miércoles, 27 de abril de 2011

algunas notas de Marina sobre nuestro estar juntos

portuñol

sobre o reflexo móvel

É diante do espelho das águas do lago que nossa identidade dissolvida, reflete sua (in)consistência, uns nos outros, transfigurados habitantes de um mesmo barco, de um mesmo azul-tecido, tecido- vestido usado por minha avó em 1953, vestido-tempo, tecido do acaso a se tramar no presente de nossa residência. O espelho é agora o mais profundo: é a pele de um lago. A membrana que separa o barco do fundo é a superfície de contato capaz de dissolver nossa imagem.

Há algo que se vê do outro lado do espelho e que não é reflexo, nem reflexão. ( Juliane Farina in Desertação pg57)... Narciso fere a si mesmo ao tocar em sua imagem: o espelho se liquefaz.

Mercedes, minha avó que nunca gostou do próprio nome, do nome próprio, porque a todos lembrava uma marca de automóveis, trabalhava com sua família na administração da sede social de um clube, neste clube um restaurante servido por ela, o pai, a mãe e as duas irmãs, foi notada pelos jogadores de cartas, nos bastidores dos bailes. os associados do clube lhe convidaram para rainha da sociedade. o vestido de seda italiana, bordado a mão, azul fértil, azul ávido espírito de festa, seu gosto pela alma coletiva. diante de uma estrela com sua altura, com um mastro real também de estrela, sentada no trono dos nobres, do outro lado, não mais servidora dos nobres mas a rainha, ela mesma, nesse jogo de existir, uma transição de um lado a outro, da vida-morte, servir-receber, ela ria, e dançava.

Mercedes me criou com muito tempo de sua própria vida, com histórias, muita polenta, e um guarda-roupa parque de diversões onde se podia estar dentro escondido atrás dos travesseiros sentindo o cheiro de naftalina das camisolas guardadas de seu enxoval, das toalhas de banho e rosto nunca usadas, ( porque um dia pode acontecer alguma coisa… então tenho toalhas novas), e, sim, na grande caixa de baixelas aço-inox, o vestido de rainha. Quando ela abria a caixa para nos deixar brincar, eu e minha prima, saíamos arrastando a seda italiana no meio do milharal, "vamos brincar de rainha!!!" acompanhadas de nossa súdita Luli, uma cadela magra e vira-latas que latia como louca para quem se aproximasse da casa. nosso jogo tinha regras claras, por algum tempo uma era a rainha e a outra a servidora, depois trocávamos os papéis na pequena cozinha de metal que fora de nossa tia na infância, com as panelinhas, o fogão, a bandeja com que servíamos uma à outra infinitas vezes até cansar, até Mercedes do outro lado do muro me chamar: Marina, vem pra casa!

Portuñol foi experiência. é. Compreendi que pensaríamos no processo de individuação a partir de uma perspectiva dobrada em muitas, vivendo uns os outros, uns dos outros, absorvendo do outro até o momento em que pudéssemos por instantes praticar a não existência de um Eu, habitar um plano onde os fluxos predominavam sobre as afirmações ou justificações de um Eu.

em fuga da paisagem das nossas residências cotidianas, colonizadas de eus, eus operativos na trama social, eus sociais, eus-previsão do tempo, eus-mulher-solteira-sozinha, eus-mãe-esposa-amorosa, eus-artista-marginal, eus-homem-mulher-criança, eus-facilmente reconhecíeis, ou pior, eus-aceitáveis, engrenagens da máquina de captura do nosso desejo pela identificação, eus dos quais estamos cansados, … retirar-se desta paisagem autoafirmativa por 10 dias nos propõe Leti, habitar esse lugar onde já não é necessário enunciar-se diariamente para poder existir. onde se existe nas bordas do outro, onde se gira no outro, onde o eu é mobilidade, é uma onda no vento diverso dos dias.

“A aranha nada vê, nada percebe, de nada se lembra. Acontece que em uma das extremidades de sua teia ela registra a mais leve vibração que se propaga até seu corpo em ondas de grande intensidade e que faz, de um salto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, a aranha responde unicamente aos signos e é atingida pelo menor signo que atravessa seu corpo como uma onda.” (Deleuze, Gilles Proust e os Signos, 2006c, p.172/173) esta metáfora da aranha-teia me remete aos exercícios propostos pelo Ricardo, deixar-se atravessar como onda e cair no desconhecido imprevisível.

outro fluxo que cavou uma rachadura em meu corpo em arte foi uma percepção da Leti a respeito da representação e da presentação. "quando você está representando está querendo trazer a ausência. esta trabalhando com aquilo que não está. quando você presenta ( apresenta ) está revelando o que está presente" e neste exercício criador de revelar o que está presente preciso agarrar-me ao disponível, olhar para o disponível, arrastar-me pelo disponível, estar também disponível, e nessa disponibilidade não passiva, não ativa, modelar a existência do que existe enquanto criação minha de possíveis, possíveis nunca esperados, confesso.

um sapo coachando na lama enamorado pelo céu.